Os censos da URSS e a fraude do “holocausto ucraniano” (3)
Funcionário do IRD - o departamento de “propaganda encoberta” do serviço secreto inglês - Conquest tentou ressuscitar o “holocausto ucraniano”. Segundo ele, “nessa espécie de história não há prova” e “a melhor fonte é o rumor”. Foi desmentido até pelos anti-comunistas da “sovietologia”
CARLOS LOPES
Forçoso é reconhecer que George Bush (pai) tinha suas razões para condecorar Robert Conquest com a “Medalha Presidencial da Liberdade”: a presidência de Bush não era mais do que a extensão de seu mandato como diretor da CIA; as obras “históricas” de Conquest são apenas a continuação de sua atividade funcional no departamento de desinformação do MI6.
Há 17 anos, quando publicou, aqui no HP, “A Constelação dos Falsificadores da História” (posteriormente incluído no livro “A História Continua”), Cláudio Campos, fundador de nosso jornal e secretário geral do Movimento Revolucionário 8 de Outubro, caracterizou precisamente essa atividade funcional:
“No final dos anos 60, Robert Conquest preencheu centenas e centenas de páginas, às quais deu o nome de ‘O Grande Terror’. O livro pretendeu ser um estudo exaustivo e em profundidade dos ‘crimes’ e ‘expurgos’ de Stalin, e obteve grande repercussão nos meios que queriam ouvir o que Conquest dizia. Ele era ‘apoiado’ numa quantidade verdadeiramente impressionante de documentos, relatórios secretos e não secretos, atas de reuniões e congressos do PCUS, testemunhos, uma infinidade de depoimentos em livros, revistas e jornais. (....) “Conquest não revelava a menor capacidade de avaliar, analisar, confrontar de forma séria esses documentos, de maneira a poder estabelecer qual era, de fato, a verdade histórica. Ele estava doentiamente obcecado por uma fantasia que preestabelecem de Stalin, e usava esses documentos simplesmente para pinçar aqui e ali, da forma mais irresponsável possível, os elementos que lhe permitissem reproduzir o seu tenebroso pesadelo. Revelava uma impermeabilidade verdadeiramente notável para os gritantes elementos de verdade contidos naqueles materiais, completa adstringência aos relatos mais inverossímeis e, sobretudo, uma imaginação absolutamente solta e pervertida na ‘interpretação’ dos textos que reunira”.
Na época em que Cláudio escreveu as palavras acima, ainda não era conhecido amplamente o passado de Conquest como funcionário do IRD (“Information Research Department” - o departamento do serviço secreto inglês para, nas palavras de seu criador, Christopher Mayhew, “contra-ofensiva de propaganda encoberta contra os russos”).
O fato, apesar de revelado pela primeira vez em 1978 pelo repórter David Leigh, no “The Guardian”, de Londres, não chamou a atenção até a segunda metade da década de 90.
Também não era sabido que “O Grande Terror” (1968) é, fundamentalmente, um recozinhamento dos textos que Conquest preparara para o IRD entre 1947 e 1956, recheados por citações da documentação soviética a que esse colarinho branco do MI6 teve acesso antes da substituição de Kruschev na URSS. Confirmando a exatidão das palavras de Cláudio, o contato com essa documentação não teve nenhum efeito sobre Conquest. Nada mudou no que já havia escrito. Serviu apenas para que ele pinçasse trechos, introduzindo-os no que antes produzira sem precisar de documentação alguma.
“SOVIETÓLOGOS”
Algo diferente aconteceu com “The Harvest of Sorrow” (1986), onde ele já não dispunha mais de acesso aos arquivos soviéticos – e, mesmo que dispusesse, seria inútil para rechear a falcatrua do “holocausto ucraniano”, pois esses arquivos estão abertos desde 1990 e ninguém conseguiu encontrar nada para apoiar essa invenção, nem Conquest conseguiu, a partir deles, acrescentar uma linha ao que havia publicado em 1986.
Assim, as fontes de Conquest em “The Harvest of Sorrow” são, aberta e quase exclusivamente, os colaboracionistas ucranianos – isto é, os criminosos de guerra que, depois da libertação da Ucrânia pelo Exército Vermelho, entraram nos EUA e Canadá, sendo depois aproveitados pela CIA.
Na verdade, foram eles que bancaram Conquest durante a feitura do livro: a Ukrainian National Association, um grupo com sede nos EUA que desde antes da II Guerra era composto por simpatizantes do nazismo (seu jornal, por germanofilia, foi proibido no Canadá durante a guerra), pagou US$ 80 mil a Conquest para que “The Harvest of Sorrow” fosse escrito - o que, segundo ele, foi uma generosa doação para as despesas com “pesquisas” (cf. Jeff Coplon, “In search of a soviet holocaust”, Village Voice, 12/01/1988).
Em seguida à publicação, aqueles anti-comunistas do meio acadêmico que pretendiam alguma credibilidade, dissociaram-se, como observa Coplon, imediatamente do livro de Conquest. A começar pelo já citado Alexander Dallin, declarando que a história de Conquest “não faz sentido”. (Dallin tinha fama de ser o mais “liberal” dos “sovietólogos”; para que o leitor tenha uma idéia, um dos seus livros sobre a URSS foi escrito em parceria com sua aluna favorita, a senhorita Condoleezza Rice).
Roberta Manning, que escreveu “The Tragedy of the Soviet Village: Collectivization and Dekulakization”, resolveu ser caridosa com Conquest: “Ele é terrível fazendo pesquisa. Ele malbarata as fontes, distorce tudo”.
Um pouco mais incisiva foi sua colega Lynne Viola, autora de uma série de livros sobre a “resistência popular e camponesa” ao “regime de Stalin” e primeira acadêmica dos EUA a ter acesso aos arquivos soviéticos sobre a coletivização da agricultura: “Eu desprezo completamente [o livro de Conquest]. Por que, em nome de Deus, esse governo paranóico desejaria conscientemente produzir uma fome, quando estavam aterrorizados pela guerra [com a Alemanha]?”.
Mas nada se comparou, em síntese e expressividade, à reação de Moshe Lewin, autor de um calhamaço denominado “Russian Peasants and Soviet Power: A Study of Collectivization”, ao livro de Conquest:
“Isso é merda, lixo [this is crap, rubbish]. Eu sou um anti-stalinista, mas não vejo como essa campanha [do “holocausto ucraniano”] vai aumentar o nosso conhecimento, somando horrores, somando horrores, até se tornar uma patologia”.
Mas quem disse que a questão – de Conquest e, na verdade, dos “sovietólogos” em geral - é aumentar o conhecimento?
BLACK PROPAGANDA
Na reportagem de David Leigh no “The Guardian”, o fundador do IRD, Christopher Mayhew, que em 1947 era sub-secretário do Ministério das Relações Exteriores inglês (Foreign Office), declara que o material anti-comunista que o departamento fornecia a jornalistas da Inglaterra e de outros países “somente era ‘black propaganda’ no sentido de que nosso trabalho era todo encoberto e a existência do departamento era confidencial” (cf. David Leigh, Death of the department that never was, “The Guardian”, 27/01/1978, pág. 13; sobre o IRD, ver, também, “The Observer”, 29/01/1978, How the FO waged secret propaganda war in Britain).
“Black propaganda” é o nome dado pelos “serviços de inteligência” à propaganda que é passada ao público sem que este saiba que é propaganda, isto é, como se fosse fato ou notícia. Somente por essa razão, para passar como fato a propaganda mais enganosa, o “trabalho” precisa ser “todo encoberto”, inclusive a existência do departamento que o faz. Porém, a julgar pelo que diz Mayhew, as coisas eram assim (inclusive em relação ao Parlamento) para garantir que a propaganda do IRD dissesse somente a verdade... Um fariseu inglês não tem competidores entre os fariseus do mundo. São muitos anos de experiência e refinamento. Segundo a reportagem do The Guardian, “funcionários ‘seniores’ [do IRD] admitem que o material passado [aos jornalistas] era pesadamente ‘tendencioso’ [slanted]’’.
Leigh descreve que “o IRD também encorajou a produção de livros, descrita em Whitehall [sede do Foreign Office] como ‘fertilização cruzada’”. O principal exemplo de “fertilização cruzada” são os livros de Conquest, que aparece na reportagem contando que “depois que deixou o IRD, foi sugerido que ele poderia combinar em um livro alguns dos dados que tinha reunido de publicações soviéticas. Ele vendeu à[editora] Bodley Head uma série já pronta [ready-made] de oito ‘estudos soviéticos’. Bodley, disse, publicou-os como um negócio comercial normal, vendendo (....) um terço das cópias para [o editor encoberto da CIA] Fred Praeger, que também publicou-os como um negócio comercial normal”.
O departamento de Conquest só não era segredo para o serviço de segurança soviético, que teve um agente dentro dele, Guy Burgess. O IRD sabia disso desde 1951, quando Burgess foi para a URSS. Mas isso não incomodou o departamento: quem não podia saber da sua existência era o povo inglês e outros povos do mundo.
PERCOLAR
Antes de “The Harvest of Sorrow”, Conquest já havia tentado outros pogroms contra a pátria de Gogol. Em “O Grande Terror”, a fome matava 3 milhões de ucranianos. Dezoito anos depois, os mortos subiram para 14,5 milhões. Entre um morticínio e outro, Conquest, com alguns parceiros, produziu, em 1984, “The Man-Made Famine in Ukraine” (“A fome artificial [“Man-Made”= fabricada pelo homem] na Ucrânia”).
Nesse panfleto precursor, diz Conquest:
“Nessa espécie de história nós não temos prova. (....) a incontestabilidade da evidência pode ser plena mesmo quando não é documentada ou completa” (cf. pág. 37 de “The Man-Made Famine in Ukraine”, Washington, 1984, American Enterprise Institute).
É mesmo pior do que a exposição que fez sobre “O Grande Terror”:
“A verdade, portanto, somente pode ser filtrada [percolate] na forma de disse-me-disse [hearsay] (....) basicamente, a melhor fonte, ainda que não infalível, é o rumor”.
Tão interessante quanto a declaração despudorada de que sua fonte é o boato, é a afirmação de que a verdade, em vez de conhecida em sua essência, precisa ser “filtrada” (no original, “percolada”, isto é, coada e limpa de “resíduos”, inclusive com o uso de soda cáustica – v. os verbetes “percolação” e “percolar” no Dicionário Caldas Aulete, ed. 1980).
Logo, vale tudo: a “fome provocada” na Ucrânia não foi uma punição aos que não aderiram à coletivização, pois, diz Conquest, a fome foi também contra os que aderiram a ela. Por que Stalin iria fazer isso contra os que o apoiavam, Conquest não explica. Não se sabe, também, porque Stalin desistiu de “eliminar” o povo ucraniano após 1933.
E havia mais coisas inexplicáveis:
Tombaram, na luta contra o nazismo e os traidores do país que Hitler instalou durante a ocupação, quase 9 milhões de ucranianos. Assim como os 500 mil ucranianos que constituíram a Resistência – isto é, que formaram a guerrilha soviética debaixo da ocupação nazista – eles eram, na grande maioria, camponeses, e tinham, como lema, “por Stalin e pela pátria”. Tão heróico comportamento e tão grande entusiasmo por Stalin, depois que 40% ou 60% de seus compatriotas morreram numa fome deliberadamente provocada?
Com tanta coisa – e desse tamanho - por explicar, Conquest não podia se safar com a fulgurante teoria de que o “holocausto ucraniano” não precisava de provas, simplesmente porque não tinha provas. Nem com a instituição do “disse-me-disse” como fonte suprema da verdade.
Daí, o recurso à manipulação dos números dos censos soviéticos.
ESTABLISHMENT
Alguns leitores, provavelmente, nos perguntarão como é possível que uma falsificação tão grosseira tivesse o patrocínio de universidades como Harvard e Stanford - que, com as de Princeton e Yale, são o “créme de la créme” do establishment acadêmico dos EUA.
McGeorge Bundy, que foi reitor em Harvard, professor da Universidade de Nova Iorque, Conselheiro de Segurança Nacional dos EUA (1961-1966), coordenador das operações encobertas do governo norte-americano (1964-1966) e presidente da Fundação Ford, definiu assim a questão:
“Em enorme medida, os programas de estudo de área desenvolvidos pelas universidades americanas nos anos depois da guerra foram compostos, dirigidos ou estimulados pelos diplomados do OSS [Office of Strategic Services: o antecessor da CIA] – uma notável instituição, meio tira-e-ladrão e meio encontro de faculdade. Ainda é verdade hoje, e eu espero que sempre será, que existe um alto grau de interpenetração entre as universidades com programas de área e a miríade de agências de informação do governo dos Estados Unidos.” (McGeorge Bundy, “The Dimensions of Diplomacy”, cit. em Douglas Tottle, “Fraud, Famine and Fascism”, pág. 58).
O OSS foi dissolvido pelo presidente Truman em setembro de 1945. Portanto, não é ao OSS que McGeorge Bundy se refere, ao falar dos programas das universidades “nos anos depois da guerra”, mas à CIA – da qual foi um dos idealizadores, com Allen Dulles, George Kennan e Nelson Rockefeller.
Apenas, Bundy é demasiado fariseu para falar publicamente a verdade, mesmo quando sabe que todos sabem do que está falando, não fosse ele o inventor da teoria da “negativa plausível”, pela qual o governo americano pode mentir à vontade, desde que tenha uma história para encobrir a mentira.
PREITO
Em abril de 2005, durante a festa de aniversário de um companheiro e amigo comum, comentei com Cláudio Campos alguns artigos de Walter Duranty, correspondente, na década de 30, do “The New York Times” na URSS.
Naquele dia, o que mais interessou a Cláudio foi a campanha de difamação contra Duranty, após sua morte, em 1957, cuja base é a de que ele teria ocultado a “fome na Ucrânia” dos leitores do “Times”. Ao contrário do que Conquest e outros disseram, as matérias de Duranty estão longe de ser apologéticas em relação ao socialismo, mesmo em relação à Ucrânia de 1932-1933. Apenas, ele recusou-se a endossar a fraude nazista.
Cláudio manifestou, então, que devíamos pesquisar e escrever um artigo sobre o assunto, e fez várias sugestões valiosas a esse respeito. Fiquei, então, de levar o projeto à frente. No entanto, o falecimento de Cláudio, no mês seguinte, impediu-me de continuar contando com sua sempre luminosa orientação. Nos últimos três anos, tenho voltado esporadicamente à pesquisa das fontes, mas sem tempo para finalizar algo sobre o assunto.
O fato é que somente agora, depois do discurso de um senador da oposição repetindo as infâmias nazistas de 75 anos atrás, senti-me obrigado a publicar o que várias vezes esbocei.
Assim, este trabalho é dedicado ao seu verdadeiro idealizador. As imperfeições, naturalmente, devem ser depositadas na minha conta-corrente.
A Cláudio Campos, in memoriam.